sexta-feira, 30 de março de 2012

Cercas de Pedra (Walter Spalding)

Resgatando o Passado Serrano

Por José Carlos S. da Fonseca


Permitam-me trazer para esta coluna uma poesia que na última terça-feira fez cinquenta anos e que foi escrita por um dos nossos grandes historiadores: Walter Spalding (1901/1976), natural de São Jerônimo, a mesma cidade natal do saudoso e querido prefeito de São Francisco de Paula, o médico Dr. Ângelo Athanásio. Com mais de 130 obras, Spalding foi também poeta, cronista, escritor, contista, dramaturgo e ensaísta. Nesta poesia, além de serem homenageadas as cercas feitas de pedras dos campos do nosso Rio Grande do Sul, há também muitas referência sobre a nossa flora e nossos pássaros. Nossas taipas serranas estão por aí, espalhadas pela linda região dos Campos de Cima da Serra, mais do que centenárias, mais do que antigas, são parte da nossa história e merecem serem preservadas e sempre muito apreciadas.

Cercas de Pedra

Velha cerca de pedras que atravessas
os campos do Cecito,
quem sabe a tua idade, a tua história?
Talvez sejas recuerdo dos escravos,
ou recuerdo dos índios das Missões.

Em tuas pedras que o tempo patinou
dos musgos mais variados, de begônias
e de verdes avencas nas baixadas,
quanto sangue de negro e quanto suor,
quantas lutas, talvez, de guaranis,
ou de tauras, charruas e minuanos,
amoldaram-te, tosca divisória
de estâncias e potreiros!

E aí estás, velha cerca pedregosa,
com teus restos lembrando outras idades,
cortejada por árvores lindaças
que o rumo te acompanharam!

Ipês e timbaúvas, caneleiras,
tarumãs com seus frutos cor de sangue
gotejados em cálices dourados,
lembrando o sangue ardente que tombou
do índio vago charrua e minuano,
dos tipos que os gaúchos amassaram
neste solo sagrado;
branquilho, aroeirão, pau-ferro, móio,
cedro, açoita-cavalo de flor índia,
de uma rosa arroxeada a recordar
amores e saudades de outros tempos;
angico, catiguá, sete-sangrias,
pessegueiro bravio, o belo umbu,
tradição das campinas do Rio Grande
das coxilhas canhadas e repechos,
pra dar sombra e conforto ao viandante;
a figueira rainha pampeana,
com seus braços imensos sempre abertos
para o abraço fraterno;
e  o espinilho ardiloso que, em pequeno,
se defende com seus acúleos bravos,
com as belas chinocas meio ariscas
dos olhos sedutores da gauchada
que a rodeia toureando-lhe os instintos.
Mas, tal como o espinilho
que depois de maduro perde o espinho
e se cobre de flores sorridentes
e de frutos que são gotas de sangue
retiradas da terra e que na terra
tombaram fecundando-a,
a chinoca que o tempo amadurou
se entrega meigamente
pra raça continuar ...

Velha cerca de pedras que atraíste
a bela flora arbórea do Rio Grande
para teres, constante, junto a ti
sabiás cantadores, bem-te-vis,
o amoroso e encantado beija-flor,
tico-tico, chopins, peterriris,
que outros chamam cucharras,
tesoura, alma-de-gato e, entre outros mais,
o Forneiro gentil, - o João-de-Barro,
que ao índio ensinou, qual engenheiro,
suas ocas construir, depois ao guasca
o rancho-tradição onde nasceram
esses tauras que à lança, espada nua
e patas de cavalo demarcaram
os lindes deste coração gaúcho,
estrela do Brasil,
que é o Rio Grande do Sul!

E por volta, nos campos verde-gaio,
perdizes a piar e quero-queros,
sentinelas dos plainos e coxilhas,
voluteando serenos sob o céu
claro e azul, deste Pago, e, sobretudo
ao por do sol sangrando no horizonte
a saudade do dia que findou.

   A sombra dos caponetes
                                     ao longo da velha cerca
                                     e na ardentia do sol,
                                     catando sem nada achar
                                     no lombo duro dos touros,
                                     das vacas e do terneiros,
                                     das ovelhas e carneiros,
                                     da tropilha de “pintados”
                                     e mais alguns pêlos-duros
                                     um bandito de chimangos
                                     - pula aqui, salta acolá -
                                     se entrecruza, violento,
                                     com maitacas e caranchos
                                     meio sem norte, perdidos
                                     como máulas perigosos
                                     em busca de votação ...

Velha cerca de pedras que atravessas
os campos do Cecito
és a marca primeira destas terras
onde o guasca largado se perdia
a correr avestruzes, cervos, pardos
e a imensidão de gado xucro, alçado,
orelhano no mais,
que o pampa povoava.

Velhas pedras limosas,
relicário gauchesco de outras eras,
eu vos rendo homenagem
e vos passo revista em continência,
continência ao Rio Grande do passado,
ao Rio Grande piazote altivo e bueno,
ao Rio Grande do Sul, do guasca nobre
destemido, viril e hospitaleiro.

Estanciola do Cecito, em Santiago, 27 de março de 1962.

(A José de Figueiredo Pinto, o grande poeta e amigo Zeca Blau, como recuerdo dos dias inolvidáveis que passei em sua estanciazita).
Walter Spalding

Antiga taipa da Fazenda Rodeio das Pedras de Boaventura Virgilino dos Santos - Foto de José Carlos da Fonseca

Jornal Integração nº 102, edição de 23 de março de 2012
 
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